HOMILIA DO NÚNCIO APOSTÓLICO
48ª Assembleia Geral da CNBB
Brasília, - 4/4/2010
Missa de abertura da Assembleia
“Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou” (Jô 14, 27ª)
Estas palavras de paz que Jesus dirige a seus discípulos no discurso da última Ceia, que acabamos de ouvir no evangelho, constitui hoje para nós Bispos um momento de grande alegria e um ponto privilegiado de reflexão, como sucessores dos Apóstolos, que celebram a Eucaristia ao início da quadragésima oitava Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Estas expressões estão em sintonia com aquelas que Jesus, entrando a portas fechadas no cenáculo na tarde da Páscoa, disse: “A paz esteja convosco”.
Eminênicas, Excelências, Irmãos no Episcopado e irmãos e irmãs em Cristo.
Com estas mesmas palavras pascais saudar a todos, aqui presentes neste solene rito eucarístico, com afeto fraternal e profunda comunhão, na minha qualidade de Núncio Apostólico, Representante de Sua Santidade o Papa Bento XVI no Brasil, honrado e grato pelo convite formulado por o Exmo. Presidente da CNBB, Dom Geraldo Lyrio Rocha; convite, que me permite encontrar novamente o episcopado brasileiro, celebrar a Eucaristia e expressar-lhe minha alta estima e minha sincera gratidão pela sua esmerada e zelosa ação pastoral no Brasil, que pude constatar nas inúmeras visitas pastorais tomadas de posse, celebrações comemorativas, assembléias e encontros ao longo de minha missão eclesial e diplomática. A Visita “ad Limina Apostolorum” em curso manifesta ainda mais o vosso afeto episcopal e a vossa comunão para com o Santo Padre e para toda a Igreja espalhada no mundo.
Evocando as palavras de Jesus que o Celebrante dia na oração do rito de Comunhão: “Senhor Jesus Cristo dissestes aos vossos apóstolos: ‘Eu vos deixo a paz, eu vos dou a minha paz’”, nós neste momento nos introduzimos na profundidade da identidade messiânica de Jesus, que se revela Príncipe da paz e Cristo nossa paz e nos convida a refletir ainda mais no verdadeiro significado da paz, tão desejada e querida por todos neste mundo convulsionado, violento e desorientado.
“Shalom”, paz, para os judeus não é simplesmente uma saudação habitual de augúrio, como quer significar também na linguagem de hoje no âmbito comum e profano. Os Judeus, de acordo com a própria fé e cultura, provindas das Sagradas Escrituras, atribuíam ao termo “shalom” um significado mais profundo, que pode ser resumido assim: a plenitude da vida e da salvação, a perfeição e a felicidade, como realização de todos os desejos humanos, as esperanças messiânicas, incluindo a conquista definitiva da comunhão com Deus, cuja componente essencial do bem supremo é a paz, como presença de Deus no meio do povo (cf. Missal Quotidiano, Ed. Paulinas, 1985, pág. 396).
Jesus, quando fala de paz e diz: “Deixo-vos a paz, a minha paz eu vos dou”, entra nessa perspectiva bíblica e se define como protagonista e realizador das expectativas messiânicas. Ele, enquanto Messias, o Filho de Deus feito Homem, despediu-se dos discípulos na última Ceia utilizando a forte expressão, que vai mais além de toda simples saudação: “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou”; e qualifica a paz como um “dom”. Não resulta na literatura profana, nem nas Sagradas Escrituras, uma linguagem tão direta e em primeira pessoa, como estas proferidas por Jesus. Aqui como em outros temas, concernentes o Sábado, o Templo, Abraão, Moisés, a remissão dos pecados, Jesus se atribui os mesmos poderes de Deus em primeira pessoa. Não fio condenado à morte por se igualar a Deus e se declarar Filho de Deus?
A partir do evento Jesus, então, o termo paz não é mais uma simples palavra de conveniência ou de protocolo formal nas saudações e nas despedidas, é uma definitiva expressão de salvação escatológica, oferecida por Ele aos homens e as mulheres de todos os tempos através do ministério da Igreja a longo dos séculos. Justamente pode-se dizer que Jesus é nossa paz, porque Jesus é o único Salvador e Redentor, que com sua presença e ação instaura e garante a Paz no mundo.
Neste sentido entendemos melhor, a saudação de Jesus, depois da ressurreição, aparecendo aos apóstolos: “a paz esteja convosco”. Com Ele, o Cristo ressuscitado, a paz è estabelecida e se torna uma realidade operante no mundo, como um dom duradouro e permanente. Jesus, no respeito da liberdade humana, não impõe a paz que ele dá; anuncia o dom da paz (“deixo-vos a paz”), oferece a paz (“a paz esteja convosco”) e define o tipo de paz (“minha paz”). A paz de Jesus é a sua paz; é aquela que ele dá aos seus discípulos; nEle se determina o tipo de paz (cf. Comm. Teol. Nuovo Testamento, II Vangelo di San Giovanni Paidéia, Edizione Brescia, 1981, pági. 141.)
Passando a contrapor a sua paz àquela que dá o mundo, Jesus diz: “nãovo-la dou como o mundo a dá” (v. 27b), querendo estigmatizar peremptoriamente que a paz do “Príncipe deste mundo”, Satanás, é oposta radicalmente a sua, e este tipo de paz está para acabar, porque foi decretado o juízo do mundo e a caída de seu príncipe. A vitória de Cristo sobre o maligno e seu império aconteceu com ressurreição e a partir dela foi inaugurado um mundo renovado. Neste mundo novo a luz e a vida circulam já em abundancia e a graça da redenção está em ação no universo que geme as dores do parto por seu resgate final
O mundo regenerado pelo sangue de Cristo e constituído como nova criação, se torna conseqüentemente o espaço e o tempo da ação dos cristãos, que não são deste mundo, mas estão no mundo para dar testemunho da palavra, da pessoa de Cristo que assegura a vida e a felicidade para sempre.
A inauguração dos novos tempos indica que o mundo ferido pelo pecado e em continua e incessante gestação por uma definitiva redenção, continuará até o fim dos tempos experimentando na sua realidade terrestre e cósmica, conflitos, guerras, homicídios, roubos, injustiças, violências, desastres naturais e ameaça de destruição planetária.
É o tempo da Igreja, é o nosso tempo, em continua tensão entre o bem e o mal, entre Cristo nossa paz, a verdadeira paz, e o mundo em busca permanente de paz, de progresso e de felicidade.
É tempo da Igreja no Brasil, nos seus contrastes gritantes de situações de violência, de injustiças, de corrupção, de desigualdades sociais, que a partir de Aparecida de 2007, adere com todas suas forças a Missão continental de evangelização, lançada ao nível latino-americano e caribenho. Bem a propósito neste ano Assembleia Geral Ordinária da CNBB tratará o tema central: “Discípulos e Servidores da Palavra de Deus e a missão da Igreja no mundo”.
O Concílio Vaticano II na Constituição pastoral “Gaudium ET spes”, enfrentando o tema da paz e da sua promoção na comunidade internacional, coloca os conceitos básicos sobre a natureza da paz, conceitos iluminados pela revelação e a tradição da Igreja. “A paz, diz o Concílio, não é simplesmente ausência da guerra; nem se reduz ao estabelecimento do equilíbrio entre as forças adversas ou resulta de dominação despótica (...); é (...) ‘obra da justiça’ (...), fruto da ordem que o divino Criador estabeleceu (...), que deve ser realizada pelos homens (...) (...) a paz nunca se alcança de uma vez para sempre, antes deve estar constantemente a ser edificada (...)”. E, finalmente: “A paz terrena, nascida do amor do próximo, é imagem e efeito da paz de Cristo, vinda do Pai. Pois o Filho encarnado, príncipe da paz, reconciliou com Deus, pela cruz, todos os homens” (n. 78).
O papa Paulo VI em 1967, com brilhante e inspirada intuição, acolheu o ensino conciliar e respondeu aos anelos e desejos mundiais de paz naquele momento à beira de conflito mundial nuclear, com a instituição da Jornada Mundial da Paz, a ser celebrada no dia primeiro de Janeiro de cada ano. A recente celebração da Jornada foi no primeiro de Janeiro 2010, a LXIII ( quadragésima terceira) Jornada Mundial da Paz, com o tema: “Se queres cultivar a paz, preserva a criação”.
A centralidade de Cristo na historia se contrapõe, hoje mais que no passado, ao antropocentrismo dominante e agressivo do pensamento filosófico e da ciência, que não se limita às esferas intelectuais ou tecnológicas; desce rapidamente no meio da gente comum e se torna práxis de vida, habitus, norma e costume. Este modo pensar é subjacente às formulações recomendadas em sedes internacionais, obrigado os Estados membros das organizações internacionais a adotá-las no próprio país, como normas à implementar, com conseqüências nefastas, sobretudo nos assuntos da vida, da dignidade da pessoa humana, da liberdade de expressão e de religião, da salvaguarda das instituições, como o matrimônio, a família, do conceito de gênero, desvirtuando e deturpando o real significado dos termos que constituem a substância da Carta Magna dos direitos humanos de 1948.
A Igreja sabe que Jesus chamou de “bem-aventurados os construtores de paz”, e é consciente também que os discípulos não são maiores do mestre e podem ser perseguidos e padecer sofrimentos, levando a cruz, que não é um patíbulo inútil ou uma derrota fatal do trabalho e do esforço que eles fazem na própria missão. Eles sabem que sua ação apostólica, com suas aflições, lá está para levar esperança, melhorar as condições de vida, dignificar as pessoas, oferecer-lhes uma vida melhor aqui e, sobretudo, a certeza de viver para sempre, como resposta verdadeira a última aspiração de todo homem e mulher.
A Igreja hoje atravessa um momento de profunda tristeza e amargura, um Getsêmani, um suor de sangue com dor e sofrimento. A Igreja figura nas páginas dos jornais e de outros meios de comunicação, fustigada, exposta ao público ludíbrio, pelas fraquezas de alguns de seus membros qualificados, os quais foram responsáveis de pecados e crimes gravíssimos, passiveis de juízo diante de Deus e dos tribunais. Estamos cientes que é tempo de purificação e de penitência. Acompanhamos com lucidez e clareza quanto acontece e os pastores e os Superiores maiores estão convidados a tomar de imediato as medidas adequadas, instruídas pela Santa Sé, para aplicar as penas correspondentes aos responsáveis dos crimes cometidos no território ou nas áreas de própria competência, todos solidários para fazer frente a qualquer tipo de especulação e instrumentalização e, sobretudo, unidos ao Santo Padre, atingindo em primeira pessoa, por uma campanha orquestrada e perversa, volta a desacreditar a Igreja e aos seus membros mais elevados em hierarquia. Roguemos a Deus!
Todavia, estejamos bem certos e firmes que esta onda tempestuosa vai passar, e a santidade da Igreja fica intacta porque é santa por Jesus Cristo, sua Cabeça; santos são os inúmeros homens e mulheres que são venerados nos altares e a imensa multidão de cristãos que vivem a própria vida na fé e na boa conduta moral, na fidelidade e na honestidade em família, no trabalho e nas múltiplas atividades humanas.
Jesus disse a seus discípulos: “Vós ouvistes o que vos disse: Vou e retorno a vós. Se me amais, alegrar-vos-eis por eu ir para o pai”. E mais adiante: “Eu permanecerei convosco até o fim dos séculos”.
Nesta grande luta que enfrentamos cada dia e em nosso meio, temos a certeza que Jesus está conosco.
O Congresso Eucarístico Nacional, que dentro de poucos dias se celebrará em Brasília, tem como lema “Fica conosco Senhor”. Ele nos atesta que não estamos sozinhos na batalha pela fé e pelo amor de Deus e ao próximo, no nosso trabalho pastoral, na nossa luta quotidiana de viver mais a mais segundo a lei do amor de Deus. Não estamos sozinhos ao enfrentar os desafios dos tempos contemporâneos que urgem empenho, sabedoria, entusiasmo, energias e iluminação do Espírito. O desejo pujante dos discípulos de Emaús que disseram: “Fica conosco Senhor”, é nosso desejo, nossa vontade, nosso ardor missionário de discípulos de Cristo. A Eucaristia é nosso alimento espiritual e nossa força para enfrentar todo mal. Todo perigo, todas as adversidades.
Não fiquemos tristes diante dos sofrimentos, das angustias, dos ataques e das acusações e do desrespeito. Jesus está ao nosso lado. É fiel e patrocina a nossa causa diante de Deus Pai compassivo e misericordioso.
Uma palavra agora aos novos Bispos, que rodeiam o altar e participam pela primeira vez da Assembleia Geral Ordinária da CNBB. Sintam-se bem acolhidos e recebidos com um abraço fraternal, no início do vosso pastoreio nas diferentes Dioceses do Brasil.
Jesus Bom Pastor seja vossa referência, vosso modelo, vosso guia no exercício do ministério episcopal. Sei que estais ainda experimentando o temor e o tremor da primeira notícia e sabeis que a graça de Deus é grande e sereis recompensados pela vossa generosa disponibilidade para servir a Igreja.
Vosso primeiro contato com a grei que vos foi confiada foi uma grata e magnífica experiência de grande afeto, de devoção e de incondicionada colaboração do clero e dos fieis, e já estais trabalhando e entrando em cheio nas atividades pastorais com energia e força, assistidos pelo Espírito Santo.
Faço votos que se sintam mais e mais animados e encorajados a servir com zelo a Igreja e unidos em comunhão com o Santo Padre e com os irmãos Bispos na missão comum de pregar o Evangelho e ministrar a graça de Deus, que é vida e esperança para todos.
Que Nossa Senhora Aparecida proteja a todos. Amém.