Na época em que ela foi feita, a lista (cânon) dos livros sagrados ainda não estava concluída. E assim aconteceu que a lista dos livros desta tradução grega ficou mais comprida do que a lista dos livros da Bíblia hebraica.
É esta diferença entre a Bíblia hebraica da Palestina e a Bíblia grega do Egito que veio a diferença entre a Bíblia dos protestantes e a Bíblia dos católicos. Os protestantes preferiram a lista mais curta e mais antiga da Bíblia hebraica, e os católicos, seguindo o exemplo dos apóstolos, ficaram com a lista mais comprida da tradução grega dos Setenta. Há sete livros a mais na Bíblia dos católicos: Tobias, Judite, Baruc, Eclesiástico, Sabedoria, os dois livros dos Macabeus, além de algumas partes de Daniel e Ester. São chamados “deuterocanônicos”, isto é, são da segunda (dêutero) lista (cânon).
O assunto da Bíblia não é só doutrina sobre Deus. Lá dentro tem de tudo: doutrina, histórias, provérbios, profecias, cânticos, salmos, lamentações, cartas, sermões, meditações, filosofia, romances, cantos de amor, biografias, genealogias, poesias, parábolas, comparações, tratados, contratos, leis para a organização do povo, leis para o bom funcionamento da liturgia; coisas alegres e coisas tristes; fatos verdadeiros e fatos simbólicos; coisas do passado, coisas do presente e coisas do futuro. Enfim, tudo que dá para rir e para chorar. Tem trechos da Bíblia que querem comunicar alegria, esperança, coragem e amor; outros trechos querem denunciar erros, pecados, opressão e injustiças. Tem páginas lá dentro que foram escritas pelo gosto de contar uma bela história para descansar a mente do leitor e provocar nele um sorriso de esperança.
A Bíblia parece um álbum de fotografias. Muitas famílias possuem um álbum assim ou, ao menos, têm uma caixa onde guardam as suas fotografias, todas misturadas, sem ordem. De vez em quando, os filhos despejam tudo na mesa para olhar e comentar as fotografias. Os pais têm que contar a história de cada uma delas. A Bíblia é o álbum de fotografias da família de Deus. Nas suas reuniões e celebrações, o povo olhava as suas “fotografias”, e os pais contavam as histórias. Era o jeito de integrar os filhos no povo de Deus e de transmitir-lhes a consciência da sua missão e da sua responsabilidade.
A Bíblia não fala só de Deus que vai em busca do seu povo, mas também do povo que vai em busca do seu Deus e que procura organizar-se de acordo com a vontade divina. Ela conta as virtudes e os pecados, os acertos e os enganos, os pontos altos e os pontos baixos. Nada esconde, tudo revela. Histórias de gente pecadora que procura ser santa. Histórias de gente opressora que procura converter-se e ser irmão. Histórias de gente oprimida que procura libertar-se.
A Bíblia é tão variada como é variada a vida do povo. A palavra BÍBLIA vem do grego e quer dizer LIVROS. A Sagrada Escritura tem 73 livros. É quase um biblioteca. Poucas bibliotecas paroquiais têm a variedade dos 73 livros da Bíblia!
A semente da Bíblia
Longo e demorado foi o mutirão do povo, do qual surgiu a Bíblia. Surgiu como surgem as árvores. Elas nascem de uma semente bem pequena, escondida no chão, e crescem até esparramar os seus galhos que oferecem sombra, alimento e proteção. A Bíblia nasceu de um chamado de Deus, escondido na vida do povo, e cresceu até esparramar os seus 73 galhos pelo mundo inteiro.
O chamado de Deus que deu início ao mutirão do povo é a palavra de Deus, por ele dirigida a todos os homens, também a nós hoje. Este apelo de Deus, escondido no chão da vida, foi descoberto primeiro por Abraão, depois por Moisés e pelo povo oprimido no Egito.
Eles deram a sua resposta e fizeram nascer o começo do povo de Deus. Uma vez nascido o povo, trataram de não deixar morrer a semente. Os coordenadores convocaram a comunidade, os pais reuniam os filhos para transmitir a seguinte mensagem: “Nós éramos escravos no Egito. Gritamos ao Deus dos nossos pais, e ele ouviu o nosso clamor. Chamou Moisés e com a ajuda de Deus e de Moisés, conseguimos a nossa libertação. Deus fez uma aliança conosco: ele quer ser o nosso Deus, e nós temos que ser o seu povo, observando a sua Lei, vivendo como irmãos!”
Esta mensagem é o veiozinho verde que brotou da semente. É o núcleo da fé do povo de Deus. Uma história de libertação, da qual nasceu um compromisso mútuo! Semente bem pequenina! Cabia em umas poucas frases! Mas esta história foi contada e cantada, em prosa e verso, de mil maneiras, pelo povo libertado. Foi daí que nasceram os 73 livros da Bíblia, que hoje se esparramam pelo mundo inteiro, oferecendo sombra, alimento e proteção a quem o deseja. Nasceram, para que também nós possamos descobrir hoje o mesmo apelo de Deus em nossa vida e para que iniciemos a mesma caminhada de libertação.
A mensagem central da Bíblia
Qual é, em poucas palavras, a mensagem central da Bíblia? A resposta não é fácil, pois depende da vivência. Se você gosta de uma pessoa e alguém lhe pergunta: “Qual é, em poucas palavras, a mensagem desta pessoa para você?”, aí não é fácil responder. O resumo da pessoa amada é o seu nome! Basta você ouvir, lembrar ou pronunciar o nome, e este lhe traz à memória tudo o que a pessoa amada significa para você. Não é assim? Pois bem, o resumo da Bíblia, a sua mensagem central, é o Nome de Deus!
O nome de Deus é Javé, cujo sentido ele mesmo revelou e explicou ao povo (cf. Ex 3,14). Javé significa Emanuel, isto é, Deus conosco, Deus presente no meio do seu povo para libertá-lo. Deus quer ser Javé para nós, quer ser presença libertadora no meio de nós! E ele deu provas bem concretas de que esta é a sua vontade. A primeira prova foi a libertação do Egito. A última prova está sendo, até hoje, a ressurreição de Jesus, chamado Emanuel (cf. Mt 1,23). Pela ressurreição de Jesus, Deus venceu as forças da morte e abriu para nós o caminho da vida.
Por tudo isso é difícil resumir, em poucas palavras aquilo que o nome de Deus evocava na mente, no coração e na memória do povo por ele libertado. Só mesmo o povo que vive e celebra a presença libertadora de Deus no seu meio, pode avaliá-lo.
Na nossa Bíblia, o Nome Javé foi traduzido por Senhor. É a palavra que mais ocorre na Bíblia. Milhares de vezes! Pois o próprio Deus falou: “Este é o meu Nome para sempre! Sob este Nome quero ser invocado, de geração em geração!” (Ex 3,15). Faz um bem tão grande você ouvir, lembrar ou pronunciar o nome da pessoa amada. Aquilo ajuda tanto na vida! Dá força e coragem, consola e orienta, corrige e confirma. Um nome assim não pode ser usado em vão! Seria uma blasfêmia usar o Nome de Deus para justificar a opressão do povo, pois Javé significa Deus libertador!
O Nome Javé é o centro de tudo. Tantas vezes Deus o afirma; “Eu quero ser Javé para vocês, e vocês devem ser o meu povo! Ser o povo de Javé significa: ser um povo onde não há opressão como no Egito; onde o irmão não explora o irmão; onde reinam a justiça, o direito, a verdadeira e a lei dos dez mandamentos; onde o amor a Deus é igual ao amor ao próximo. Esta é a mensagem central da Bíblia; é o apelo que o nome de Deus faz a todos aqueles que querem pertencem ao seu povo.
A esperança dos profetas
Caindo e levantando, o povo foi andando, procurando ser o povo de Deus e buscando atingir para si e para os outros os bens da promessa divina. Muitas vezes, porém, esquecia o chamado de Deus e se acomodava. Em vez de servir a Deus, queria que Deus servisse ao projeto que eles mesmos tinham inventado. Invertiam a situação. Era nestas horas que surgiam os profetas para denunciar o erro e para anunciar de novo a vontade de Deus ao povo.
A Bíblia conserva as palavras de quatro profetas chamados Maiores: Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, e de doze menores. Muitos outros profetas são mencionados na Bíblia,. O maior deles foi Elias. Os profetas, cujos nomes, gestos e palavras foram conservados, são como flores. Elas supõem um chão, uma semente e uma planta. O chão, a semente e a planta destes profetas são as comunidades que lhes transmitiram a fé.
Diante das falhas constantes do povo, desviado por seus falsos líderes, os profetas começaram a alimentar no povo uma nova esperança. Diziam: no futuro, o projeto de Deus será realizado através de um enviado especial, um novo líder, fiel e verdadeiro, chamado Messias.
Foi esta esperança maior, alimentada pelos profetas, que sustentou o resto fiel do povo e o ajudou a superar as duras crises da sua caminhada. Eles acreditavam na promessa da vida nova que haveria de surgir para todos os homens. Esta vida nova chegou, finalmente, em Jesus, o Messias.
A esperança dos pobres se realiza em Jesus e nas comunidades
Para realizar a missão do Messias, Deus não mandou qualquer um. Mandou o seu próprio Filho! Jesus, o Filho de Deus, realizou a promessa do Pai, trouxe a libertação para o povo e anunciou a Boa-Nova do Reino aos pobres.
A pregação de Jesus não agradou a todos. Os doutores da lei, os fariseus, os saduceus e os sacerdotes imaginavam a vinda do Reino como uma simples inversão da situação, sem mudança real no relacionamento entre os homens e entre os povos. Eles, os judeus, dominados pelos romanos, por cima e seriam os senhores do mundo, e os que estavam por cima ficariam por baixo.
Mas não era assim que Jesus entendia o Reino do pai. Ele queria uma mudança radical. Para ele, o povo de Deus tinha de ser um povo irmão e servidor, e não um povo dominador a ser pelos outros povos (cf. Mt 20,28).
Jesus iniciou esta mudança; colocou-se do lado dos pobres, marginalizados pelo sistema dos lideres judeus, denunciou este sistema como contrário à vontade do Pai e convocava a todos para mudar de vida. Mas os grandes não quiseram. O que era Boa Notícia para os pobres era má notícia para os grandes, pois Jesus exigia deles que abandonassem os seus privilégios injustos e as suas idéias de grandeza e de poder. Eles preferiam as suas próprias idéias, rejeitaram o apelo de Jesus e o mataram na cruz com o apoio dos romanos.
Foi aí que o Pai mostrou de que lado ele estava. Usando o seu poder que protege a vida, ressuscitou Jesus. Animados por este mesmo poder de Deus que vence a morte, os seguidores de Jesus, os primeiros cristãos organizaram a sua vida em pequenas comunidades, viviam em comunhão fraterna, tinham tudo em comum e já não havia mais necessitados entre eles (cf. At 2,42-44).
Assim, a vida nova, prometida no Antigo Testemunho e trazida por Jesus, apareceu aos olhos de todos na vida dos primeiros cristãos. Eles se tornaram “a carta de Cristo, reconhecida e lida todos os homens”( cf. 2Cor 3,2-3). Neles apareceu o Novo Testamento! É na vida comunitária dos primeiros cristãos, sustentada pela fé em Jesus, vivo no meio deles, que apareceu uma amostra clara do projeto que o Pai tinha em mente quando chamou Abraão e quando decidiu libertar o seu povo do Egito.
Jesus trouxe a chave para o povo poder entender o sentido verdadeiro da longa caminhada do Antigo Testamento. Os primeiros cristãos, usando esta chave, conseguiram abrir a porta da Bíblia e souberam entender e realizar a vontade do Pai. O Antigo Testamento é o botão, o Novo Testamento é a flor que nasceu do botão. Um se explica pelo outro. Um sem o outro não se entende. Como eles, assim também nós devemos reler a nossa história à luz de Cristo, com a ajuda da Bíblia, e tentar descobrir dentro dela o apelo de Deus, desde o seu começo.
Como ler com proveito a Bíblia
A experiência da ressurreição, vivida em comunidade, foi o grande estalo que iluminou os olhos e revelou aos cristãos o sentido da Bíblia e da vida. A história dos discípulos de Emaús mostra isso bem claramente, pois Jesus aparece aí como o intérprete da Bíblia e da vida.
Quando, no dia de Páscoa, os dois discípulos andavam pela estrada, Jesus caminhava com eles, mas eles não o reconheceram (cf. Lc 24, 15-16). Faltava a luz nos olhos. Faltava a experiência da ressurreição. Quando, finalmente, o reconheceram na partilha do pão, Jesus desapareceu (cf. Lc 24, 30-31). Pois nesta hora, Jesus entrou para dentro deles, e eles mesmos ressuscitaram. Venceram o desânimo e voltaram para Jerusalém, onde estavam os podres que, matando Jesus, tinham matado neles a esperança. Mas eles já não os temiam. Neles estava a força maior, a força da vida que vence a morte.
A Bíblia teve um papel muito importante nesta transformação que se operou nos dois discípulos. Jesus usou a Bíblia não tanto para enriquecer os dois com idéias bonitas, mas muito mais para suscitar neles aquela mudança do medo para a coragem, do desespero para a esperança, da separação para o reencontro, da fuga para o enfrentamento, da morte para a vida. Vale a pena a gente ver mais de perto o jeito como Jesus usou a Bíblia. Ele serve de modelo para nós.
O primeiro círculo bíblico
A conversa de Jesus com os discípulos de Emaús foi o primeiro Círculo bíblico. Nele aparecem três pontos que devem estar sempre presentes na leitura e na interpretação que fazemos da Bíblia.
1. Reflexão sobre a realidade: Jesus soube criar um ambiente de conversa e, com muito jeito, forçou os dois a falarem sobre sobre os problemas da vida que eles estavam sentindo. Na conversa apareceu toda a realidade: a tristeza, o desânimo, a frustração dos dois, a sua falsa esperança de um messias glorioso, a decisão do governo e dos sacerdotes de condenar Jesus, a cruz e a morte, a conversa das mulheres que provocou espante, a incapacidade dos dois em crer nos pequenos sinais de esperança (cf. Lc 24, 13-24).
2. Estudo da própria Bíblia: Jesus usou a Bíblia não tanto para interpretar e ensinar a Bíblia, mas muito mais para com ela interpretar os fatos da vida e animar os dois rapazes. Refletiu com eles, fez da vida e animar os dois rapazes. Refletiu com eles, fez ver que estavam errados na sua maneira de explicar os fatos e mostrou, com a luz da Bíblia, que os fatos não estavam escapando da mão de Deus. Isto exigia dele um conhecimento profundo da Bíblia. Jesus conhecia a Bíblia. Junto com os dois, ele soube encontrar aqueles textos de Moisés e dos profetas que pudessem trazer alguma luz para a situação de tristeza e mudar as idéias erradas que eles tinham na cabeça. Jesus não teve medo de criticar interpretações erradas da Bíblia. Pois o texto bíblico tem um sentido certo que deve ser respeitado, para evitar que se manipule o texto em favor das próprias idéias, como os judeus faziam (cf. Lc 24, 25-27).
3. Vivência comunitária da fé na Ressurreição: Jesus andou com eles, conversou, criou um ambiente de abertura e teve a paciência de escutá-los. Falando da vida e da Bíblia, agradou tanto, que o corações dos dois se esquentou, e eles chegaram a convidá-lo para o jantar. Ficou com eles, sentou à mesa, rezou com eles e fez a partilha do pão, como se tornou costume entre os cristãos que tinham tudo em comum. Jesus não só falou, mas colocou gestos bem concretos de amizade. Ora, tudo isso é ambiente da comunidade, onde se procura viver como irmão. É aí que se faz a experiência da ressurreição, do Cristo vivo no meio de nós; a experiência de Javé, Deus libertador (cf. Lc 24, 28-32).
Quando estes três elementos estão presentes na interpretação da Bíblia, aí a Bíblia atinge o seu objetivo e acontece o milagre da mudança: os discípulos descobrem a força da palavra de Deus presente nos fatos, começam a praticá-la e tudo se transforma; os olhos se abrem, as pessoas mudam; a cruz, vista como sinal de morte e de desespero, torna-se sinal de vida e de esperança; o medo desaparece, a coragem reaparece; as pessoas se unem, se reencontram e começam a partilhar entre si a sua experiência de ressurreição; os poderes que oprimem e matam já não causam desânimo; os dois discípulos começam a reler a sua própria caminhada e descobrem que tudo começou quando Jesus falava com eles sobre a vida e sobre a Bíblia; a fé se afirma, a esperança se renova e o amor abre novos caminhos (cf. Lc 24, 33-35).
Santo Agostinho resumiu tudo isso da seguinte maneira: a Bíblia, o segundo livro de Deus, foi escrita para nos ajudar a decifrar o mundo, para nos devolver o olhar da fé e da contemplação e para transformar toda a realidade numa grande revelação de Deus.
O conhecimento da Bíblia se adquire através de uma prática constante de leitura, se possível da leitura diária.
A interpretação da Bíblia não depende só da inteligência e do estudo, mas também do coração e da ação do Espírito Santo. O Espírito de Jesus deve ter a oportunidade de nos falar quando lemos a Bíblia. Por isso, além do estudo e da troca de idéias, a leitura da Bíblia deve ter os seus momentos de silêncio e de oração, de canto e de celebração, de troca de experiências e de vivências.
VOCÊS PODEM ENCONTRAR NO SEGUINTE ENDEREÇO:
(Disponível em: http://www.arquidiocesedelondrina.com.br/dia_palavra/palavra_deus.htm, em 29/09/2009)
REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES:
1. KONINGS, Johan. A Palavra se fez livro. São Paulo: Loyola, 1999, 94p.
2. ______________. A Bíblia nas origens e hoje. Petrópolis: Vozes, 2ª. ed., 1999, 263p.
3. MAINVILLE. Odete. A Bíblia à luz da história. São Paulo: Paulinas, 1999, 159p.
4. MESTERS. Carlos. Bíblia – livro feito em mutirão. São Paulo: Paulinas, 1982, 32p.
5. CHARPENTIER, E. Para uma primeira leitura da Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1986, 100p.